Castle Bravo: o desastre nuclear que os EUA tentam esconder

Lucas Rubio
8 min readAug 14, 2021

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Quando se fala em desastre nuclear, logo nos lembramos do acidente na usina de Chernobyl, na antiga União Soviética. O imaginário coletivo se acostumou a associar a URSS e o socialismo com ideias como “desastre nuclear”, “irresponsabilidade”, “desprezo pela vida” e “censura midiática sobre o acidente”. Mas a História é testemunha de que episódios talvez ainda mais sombrios aconteceram em outros lugares e, curiosamente, não receberam a mesma carga de crítica, atenção e reprovação por parte do público.

O desastre nuclear de Castle Bravo é um exemplo disso. Castle Bravo foi um evento causado intencionalmente pelos Estados Unidos da América em terras alheias que acarretou dificuldades e tragédias inaceitáveis e que permanecem praticamente desconhecidas até hoje, mais de 67 anos depois. Mas, o que foi o desastre de Castle Bravo?

O pior desastre nuclear dos EUA é escondido do mundo

Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA despontaram como única superpotência nuclear do planeta após a detonação de três bombas atômicas (“Trinity”, “Little Boy” e “Fat Man”). Essa posição, entretanto, se manteve por pouco tempo — 4 anos depois, em 1949, a União Soviética se tornou uma potência nuclear ao testar com sucesso o seu próprio dispositivo atômico. Estava lançada a pedra do perigoso jogo da corrida armamentista da Guerra Fria.

Na ânsia de superar a URSS não só em quantidade, mas também em qualidade, design e poder de seus armamentos nucleares, os EUA começaram uma verdadeira corrida doentia rumo às bombas atômicas “super”. Essa ideia de prover os EUA de armas “super” tem um pivô que merece ser mencionado: Edward Teller, imigrante húngaro que trabalhava como cientista para o projeto de bombas nucleares dos EUA. Teller, por impulso pessoal e uma dose de megalomania, criou o desenho da primeira arma termonuclear da História, ou a “bomba de hidrogênio”. O Desenho Teller-Ullam permanece até hoje como um projeto destrutivo sem igual de arma atômica.

“No final da guerra, muitas pessoas queriam parar, mas eu não, porque sabia que ainda tínhamos conhecimentos importantes para os tempos que estavam por chegar e porque havia homens perigosos, como Stalin, por aí. Eu era o único que advogava a visão de que as bombas de hidrogênio eram um grande negócio e foi assim que eu dei minha contribuição”, disse Teller em entrevista para o documentário “Trinity and Beyond” (1995).

Para testar esses novos engenhos, os EUA montaram uma gigantesca estrutura longe dos olhos do grande público. Os locais “perfeitos” escolhidos para isso foram pequenas ilhas e atóis na Oceania, locais tomados de assalto pelos EUA durante a guerra. Nesses atóis, berços de vida marinha única e lar de populações indígenas sem igual no mundo, os EUA chegaram como forças ferozes de ocupação, deportando os habitantes locais para lugares distantes que não faziam parte de sua História, além de promoverem a reconfiguração física e ambiental das ilhas para adaptá-las para testes nucleares.

Finalmente, em 1952, os estadunidenses alcançaram sucesso no teste de uma arma termonuclear de fusão, com um poder de destruição muito maior que as armas atômicas comuns. Mas, para um país ávido por destruição e poder, isso não era suficiente. Os cientistas foram colocados para trabalhar em novos explosivos ainda mais fortes. Desse esforço, nasceu, em 1954, o dispositivo Bravo, alimentado com combustível termonuclear sólido. A vantagem de Bravo consistia em poder maior e tamanho menor, ideal para a construção de armas aerotransportadas, que poderiam ser jogadas sobre a União Soviética. Mas, antes de se projetar a versão final, era necessário testar a bomba.

Quadro da filmagem feita no Atol de Bikini mostrando o dispositivo Bravo poucas horas antes da detonação.

O teste foi marcado para o dia 1º de março de 1954, na Ilha Namu do Atol de Bikini, nas Ilhas Marshall, numa operação chamada “Operação Castle”. No atol, os EUA construíram uma gigantesca estrutura para testar Bravo e captar dados da explosão para futuros estudos e adaptações. Foi planejada uma explosão controlada de 6 megatons, o que é algo extremamente alto em níveis de destruição (6 milhões de toneladas de TNT comum, para comparação).

Às 6h45min da manhã, a ignição foi dada. A detonação, entretanto, foi um desastre.

A detonação de Castle Bravo saiu do controle.

A explosão saiu totalmente do controle dos cientistas e tomou proporções não planejadas de destruição. Castle Bravo detonou 2,5 vezes mais do que deveria, totalizando uma detonação apocalíptica de 15 megatons. O desastre se seguiu nos minutos, dias e anos seguintes não apenas com o poder destrutivo muito maior que o esperado, mas com as consequências do evento.

https://youtu.be/UupqpUCQn54

O chamado índice de precipitação, que mede o nível de partículas radiativas que são liberadas em uma explosão, foi terrivelmente mal calculado e a detonação ocorreu de maneira bastante suja. Quantidades sobrenaturais de cinzas nucleares contendo radiação extremamente perigosa para formas de vida foram lançadas na hora na atmosfera do planeta. Correntes de ar espalharam as nuvens carregadas dessas cinzas para muitos milhares de quilômetros além do local previsto, causando uma contaminação numa área de 18.000 km² locais; para se ter uma ideia, vestígios de Castle Bravo foram detectados na Índia, China, Japão, Estados Unidos e até mesmo na Europa, poucos dias depois. O cogumelo da explosão chegou a 14 km de altitude e a bola de fogo engoliu instantaneamente mais de 7 km do local de testes.

A nuvem radiativa de Castle Bravo se espalhou por todo o mundo, chegando até mesmo na Europa, mais de 12.000 km distante.

Pessoas em ilhas a mais de 400 km de distância de Bikini relataram terem visto e sentido a detonação. Nos atóis de Rongelap e Rongerik, muitas chegaram a se queimar na hora ou a desenvolver doenças posteriores. As autoridades dos EUA demorariam dois dias para decidir evacuar os indígenas atingidos diretamente pelo acidente, visando “cortar custos” com a logística da operação. Barcos pesqueiros locais, incluindo o barco japonês de madeira Daigo Fukuryū Maru (Dragão da Sorte), que estavam a mais de 100 quilômetros da explosão, também foram atingidos, gerando queimaduras terríveis nos marujos e contaminação por radiação. Um tripulante japonês morreu seis meses depois como vítima direta do acidente, outro teve um filho que nasceu morto e deformado e muitos outros morreram vítimas de câncer anos depois. Até mesmo o pessoal envolvido na organização do teste nuclear foi atingido e chegou a sofrer graves consequências. O navio USS Patapsco, por exemplo, foi alcançado pela nuvem radiativa e sua tripulação foi severamente contaminada.

Marujo japonês com queimaduras resultante da detonação de Castle Bravo, em 1954.

Quanto aos habitantes evacuados tardiamente das ilhas atingidas, eles ficaram anos sem poder retornar para suas terras. As poucas dezenas de pessoas que conseguiram voltar encontraram dificuldades em se manter, uma vez que o consumo de alimentos gerados nas ilhas foi proibido por conta da radiação. Espécies de peixes e outros animais, bases da dieta local, desapareceram da região e as populações ficaram desemparadas; a indústria pesqueira, que sustentava o modo de vida daquelas pessoas, foi arrasada. Muitas delas desenvolveram cânceres, tumores e leucemia, com alguns grupos étnicos chegando à beira da extinção nos anos seguintes. Ainda hoje, os habitantes das Ilhas Marshall têm índices de mortalidade por câncer cervical 60 vezes maiores do que a população nos EUA. Índices parecidos valem para outros tipos de doença e infertilidade.

Peixes mortos pela explosão nuclear são vistoriados com contadores Geiger.
População indígena das ilhas vizinhas foram severamente vitimadas pela explosão descontrolada.

Castle Bravo, que era um teste secreto de uma arma termonuclear, se transformou rapidamente num acidente nuclear e um incidente político e diplomático internacional. A reação instantânea do governo dos EUA foi esconder o máximo possível de detalhes do acidente, revelando apenas informações genéricas para a imprensa. Notícias muito negativas sobre o acidente foram rapidamente abafadas e trocadas por notas de rodapé nos jornais ou manchetes positivas que glorificavam como Castle Bravo havia sido a maior e mais poderosa detonação nuclear realizada pelos EUA, o que, de fato, não deixava de ser verdade. Na época, a reação de ativistas em todo o mundo acabou por criar redes de monitoramento dos níveis de radiação na atmosfera e movimentos em prol do cancelamento dos testes nucleares. Apenas em 1963 seria assinado um acordo proibindo os testes nucleares de superfície ou abaixo da água e apenas nos anos 1990 as imagens completas do acidente foram desclassificadas dos arquivos militares estadunidenses.

A detonação desastrosa de Castle Bravo abriu uma cratera de 2 km de diâmetro e 80 metros de profundidade em Bikini, que ficou inabitável. A abertura pode ser vista até hoje, quase que como um monumento ao desejo descontrolado de destruição e morte de alguns seres humanos. Até o momento, mais de 67 anos depois, ainda não é possível retomar a habitação dos locais atingidos e, talvez, isso nunca aconteça. Ainda em 2021, é possível detectar quantidades anormais de partículas de Estrôncio-90 e Césio-137 (o mesmo do acidente de Goiânia em 1987) no local de Castle Bravo, tornando inviável a presença humana contínua. Segundo o The British Medical Journal, Castle Bravo foi a detonação nuclear mais suja de toda a História, alcançando o máximo de precipitação radiativa já experimentado pela Humanidade.

A Ilha de Namu, no Atol de Bikini, completamente devastada quase 7 décadas depois do acidente.

Em sua paranoia anticomunista, os EUA empurraram o mundo para detonações nucleares como essa, catastróficas, que trouxeram muitos malefícios para a Humanidade e o ecossistema global.

Edward Teller, o projetista da bomba, morreu em 2003, aos 95 anos, defendendo sua criação como uma necessária “barreira de contenção ao comunismo”.

Castle Bravo foi a maior detonação nuclear dos EUA e também o pior acidente nuclear daquele país. Mesmo após o desastre, os EUA continuaram a conduzir experimentos nucleares nas redondezas. Até hoje, os EUA sozinhos já realizaram 1.054 testes nucleares. Eles nunca pagaram indenizações compatíveis com os danos às vítimas de Castle Bravo.

O assunto segue sendo um tabu na opinião pública dos EUA até hoje.

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Lucas Rubio

Algumas das fontes consultadas:

Instituto Australiano de Assuntos Internacionais: “Castle Bravo: marcando o 65º aniversário do desastre nuclear dos EUA” (2019). Disponível em: https://www.internationalaffairs.org.au/australianoutlook/castle-bravo-65th-anniversary/

The British Medical Journal: “Radiação e crescimento da precipitação radioativa” (1966). Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1844058/

Imagens do Relatório do Comando da Operação “CASTLE” (1954). Disponível em: https://archive.org/details/CastleCommandersReport1954

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