O dilema energético brasileiro e o sequestro da soberania nacional — breves reflexões

Lucas Rubio
9 min readJul 20, 2021

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O Brasil é um dos países mais agredidos do mundo sem que haja uma guerra aberta, declarada, com um nome próprio ou nomes de personagens envolvidos, como acontece geralmente num conflito. Essa guerra silenciosa aberta contra o Brasil e seu povo não acontece por meio de bombas caindo em nossas cabeças ou invasões em nossas praias por milhares de tropas. Esses ataques se dão por golpes financeiros, políticos, jurídicos e sociais que roubam nossos recursos, entregam nas mãos das empresas estrangeiras nossas matérias-primas, tolhem nossos direitos nacionais de autonomia e ainda provocam todo tipo de desgraça social, como reformas draconianas que cortam salários, aposentadorias e benefícios legítimos.

Eu diria que uma das frentes mais importantes dessa assim chamada guerra silenciosa é a questão energética. Claro, o termo “questão energética” abrange uma grande gama de possibilidades, que vai desde o mais óbvio — a exploração petrolífera e geração de energia elétrica — até pontos mais sensíveis — como desenvolvimento tecnológico e soberania nacional.

Sobre a questão petrolífera, creio que para todos já está muito nítido que o Brasil não teve sequer um minuto de paz depois que foram descobertas as ricas reservas do pré-sal. O anúncio da descoberta dessa poderosa reserva estratégica acionou toda uma máquina por parte das grandes potências, especialmente de uma (essa mesma que vocês estão pensando), que logo se preocuparam em remover do seu caminho qualquer impeditivo para o controle total e direto sobre essa riqueza.

Agora, um dos pontos mais importantes dessa guerra pela questão energética e que poucas pessoas se dão conta é justamente a questão elétrica. Fazem anos que o Brasil vem sofrendo com uma crise complexa e arrastada que demonstra as fraquezas do nosso Sistema Elétrico nacional.

Por nossa geografia favorável e grandes espaços abertos, a opção mais óbvia por décadas foi o desenvolvimento da motriz hídrica para a geração de energia. Acontece que essa não é uma via infinita e estática — tal como qualquer coisa na natureza, está sujeita a mudanças, sazonalidades, idas e vindas. O cenário que hoje está crítico, na verdade já estava mandando alarmes há anos: reservatórios de água descendo, chuvas que somem de um lugar e aparecem em outros e outras coisas mais.

A saída lógica para resolver esse tipo de problema seria o desenvolvimento das forças de produção energética alternativa. E temos um leque imenso de possibilidades, tamanha é a bênção que esse País tem ao possuir largos litorais, farto território banhado pela irradiação solar mais favorável, campos abertos que recebem ventos quase que sem parar e imensas reservas de urânio. Há alguns anos, o Brasil estava quase no topo da lista de países com maiores quantidades de urânio, mas tenho certeza que, se buscássemos melhor em nosso território, acharíamos tantos outros lugares e ficaríamos talvez em primeiro lugar da lista.

Há um tempo atrás, esse tipo de ação, a de caminhar na direção de outras fontes de energia, foi assumida pelo governo e, aqui, preciso citar nominalmente por uma questão de justiça, que foi pelo o governo Lula. Eu, com meus 24 anos, me lembro de ter crescido lendo nos livros escolares e revistas, além de ouvir na TV e rádio, constantes pesquisas com combustíveis alternativos. Era biomassa pra cá, etanol para lá. A Petrobras conduzia um complexo científico imenso e comerciais na TV demonstravam um futuro promissor (hoje totalmente utópico) a ser alcançado até o final da década. Quero fugir ao máximo da fantasia e nostalgia, mas eu realmente me lembro disso. A Eletrobras também era outra coisa que ficou na minha memória. Lembro do grande entusiasmo com as usinas nucleares de Angra dos Reis, que bebia da fonte de conquistas científicas da Marinha, nossa principal Força Armada, que havia dominado o ciclo de enriquecimento do urânio, chegando até na fase de construção de um submarino nuclear.

Os novos prédios dos centros de pesquisa da Petrobras, na Cidade Universitária da UFRJ, são testemunhas do auge da pesquisa científica da empresa há alguns anos.

De todos os meios alternativos para incrementar a demanda energética brasileira, a nuclear realmente parecia (e parece) ser uma das mais promissoras. O Brasil é, ainda hoje, um dos raríssimos países desse gigantesco mundo a dominar com sucesso os processos complexos para a produção de combustível nuclear necessário para rodar os reatores das usinas. A construção de Angra 3 aumentaria nossa independência e diversidade por energia a ponto de poder, somadas às outras duas usinas já em operação, alimentar de 3 a 4% de toda a demanda nacional, algo como 60% da demanda do estado do Rio de Janeiro inteiro. A subsidiária da Eletrobras, a Eletronuclear, conduzia pesquisas de altíssimo nível, como não se fazia em lugar nenhum do mundo — que parece ter estacionado na década de 1970–80 quando se fala em pesquisa com energia nuclear.

As usinas nucleares de Angra dos Reis, no RJ, administradas pela Eletronuclear, pareciam ser esperança de uma saída para o dilema energético brasileiro.

Quando parecíamos subir esse monte das oliveiras para alcançar um topo ensolarado, veio a ambição estrangeira. A chamada Operação Lava Jato, sob a insígnia, longe de qualquer suspeita, de combate à corrupção começou a arrasar as estruturas não da corrupção em si — que é, óbvio, um problema urgente do Brasil — mas das próprias estatais que moviam essas pesquisas e esses movimentos de busca de novas alternativas. Praticamente dilapidaram a Petrobras, desmobilizando totalmente a empresa, que estava no auge. Devo dizer que é no mínimo curioso que uma empresa supostamente esburacada pela corrupção tenha sido, no fim das contas, paralisada e imobilizada justamente quando da descoberta de tais esquemas. Então, depois disso, vieram aqui e começaram a levar nossos campos de exploração do pré-sal em leilões.

A Eletrobras, naturalmente, não ficou de fora. Atacaram frontalmente e com todas as forças a principal subsidiária, responsável por pesquisas impressionantes e inéditas em nosso país, a Eletronuclear, prendendo o presidente da empresa, o Almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, simplesmente o homem que havia desenvolvido uma máquina nova e nacional para enriquecer urânio e que, além disso, também tocava o Programa Nuclear Brasileiro há décadas e, por consequência, a construção do submarino. Inventando uma mentira de que o Almirante teria recebido propina para a construção de Angra 3, o juiz Marcelo Bretas, acatando as ordens de Moro, que, por sua vez, acatava as ordens de Washington, condenou talvez a maior mente científica brasileira viva a 43 anos de prisão num verdadeiro julgamento-espetáculo, no qual o currículo de méritos acadêmicos e profissionais do acusado foi usado como prova de crime; um fato inédito na história jurídica do País. Só para ficar como nota: a pena de 43 anos foi uma das maiores da Lava Jato e o Almirante Othon tinha 77 anos quando recebeu a condenação.

O Almirante Othon é um dos pais do Programa Nuclear Brasileiro. Ele inventou uma ultracentrífuga magnética que enriquece o urânio brasileiro que alimenta as usinas nucleares e o futuro submarino da Marinha. Com uma longa lista de serviços prestados à Nação, ele foi covardemente atacado pela Lava Jato.

Com isso, é claro, a Eletronuclear foi também desmobilizada. Agora, a quem interessou interromper o desenvolvimento do nosso Programa Nuclear? A quem interessou que o Brasil ficasse de fora do seleto grupo global de países que dominam a construção e operação de submarinos nucleares, tão estrategicamente importantes? A quem interessou a prisão injusta e fraudulenta do responsável pela pesquisa nacional rumo às fontes energéticas alternativas? Nós saímos beneficiados em que nisso tudo? Foi realmente uma questão de justiça e combate à corrupção?

Então, chegamos a um ponto importante nessa discussão. Com a Eletronuclear de fora da jogada e Angra 3 paralisada há anos e sem perspectivas de conclusão das obras, voltamos praticamente à estaca zero na questão energética. Ficamos, mais uma vez, reféns dos rios, represas e reservatórios. Como está claro para todos, esse meio está se tornando criticamente debilitado, ao mesmo tempo que a demanda por energia só cresce. É uma conta que não fecha. Cai a capacidade de produção de energia ao passo que sobe a necessidade de energia. O que fazer?

É aqui que a questão fica interessante. Todo mundo deve lembrar que, quando as usinas hidrelétricas estão em baixa, o Operador Nacional apela para a medida emergencial — ligar as termelétricas. As termelétricas geram energia através de turbinas que operam usando como combustível exatamente as fontes nada agradáveis: os combustíveis fósseis — carvão, petróleo. No Brasil, o ramo das termelétricas está nas mãos da iniciativa privada (que coincidência!). Ou seja, quando há crise hídrica, o Sistema Nacional Energético liga as termelétricas, que por sua vez estão sob domínio privado, que sai lucrando horrores com a crise e desgraça geral. A bandeira vermelha na sua conta paga aquelas cifras infinitas da conta bancária nas Ilhas Cayman de algum ricaço.

Com isso, fomos sequestrados pela iniciativa privada, que, aliada aos interesses internacionais, evitou seu desmantelamento ao destruir, ela mesma e com antecedência, nossas possibilidades alternativas de geração elétrica, como a nuclear, eólica, solar, geotérmicas, etc.

Tem com ficar pior? Tem sim, aquela palavrinha mágica dos liberais responde: privatização. “Privatizem a Eletrobras e tudo se resolverá!”, eles dizem. Ah, como já ouvimos essa conversa. Nos anos 1990, o leilão desenfreado das nossas estatais de áreas estratégicas — comunicações, exploração de minérios, transportes e logística — entregou ao Brasil serviços péssimos, caros e sem real alternativa de “competição”. Os mantras sagrados dos neoliberais — “livre iniciativa”, “competição”, “mercado livre”, “privatização” — entregou para o Brasil aberrações como Vivo, Oi, Claro, Vale e tantas outras empresas que, com toda certeza, estão longe de serem a palavra final em eficiência.

A privatização da Eletrobras é um golpe final e fatal nos esforços brasileiros autônomos de desenvolvimento nacional de tecnologia de ponta que nos moveria para o alto com dupla velocidade: diversificação/ampliação das motrizes energéticas e avanço tecnológico de alto nível. Privatizar a Eletrobras é tornar ainda mais todo o sistema nacional refém das empresas. É entregar nas mãos das forças estrangeiras os nossos segredos industriais e científicos guardados no coração da Eletronuclear. É também fechar nossos caminhos para a criação de indústrias modernas. O Brasil tem técnicas e recursos inovadores nessa área que são únicos e sem igual em todo o mundo, motivo de preocupação por parte dos EUA (e isso não é “conspiracionismo”, os documentos vazados da Wikileaks mostram o Império desesperado com nossas pesquisas nucleares).

Tal como ouro e outras riquezas, a energia é algo que causa cobiça em outros países, ainda mais porque a indústria energética está acompanhada de pesquisa científica que conduz, indiscutivelmente, à autonomia e independência nacional.

A grande jogada do imperialismo nesse novo milênio é, quando possível, evitar as guerras abertas e agir dentro de cenários nos quais tudo parece andar em perfeita harmonia. Para que ataques militares, tanques, aviões, bombardeios e soldados para aleijar um país quando você pode contar com meia dúzia de juízes e alguns milhões de dólares por trás das cortinas?

No fim das contas, até mesmo um pequeno projeto de Brasil minimamente soberano e avançado — longe de qualquer construção revolucionária socialista — foi capaz de mover contra nós uma máquina tão poderosa, capaz de derrubar estatais, cientistas e governos, além de colocar no cio o fascismo e as violências de todos os tipos. A guerra está acontecendo sem as bombas caindo do céu e, mesmo assim, estamos perdendo. Até quando?

É dever de todo brasileiro que se considere avesso à injustiça, servidão e atraso defender com todo o ímpeto possível a Eletrobras e as instituições públicas desse País que, mesmo que pouco, ainda mantêm de pé uma Nação. Temos muito e, ao mesmo tempo, pouco. Não devemos deixar que isso se vá. Essa defesa passa pelo estudo criterioso de nossa situação nacional em todas as frentes — econômica, social, geopolítica — e, principalmente, pela construção de um movimento centrado nas massas, operante junto das massas e consciente da nacionalidade dessa massa — brasileira. Não somos a URSS, tampouco a China, Cuba ou Coreia. O que formos fazer aqui terá de ser novo, terá de ser nosso, terá de trazer respostas para os nossos dilemas.

E essa reflexão passa, necessariamente, pela energia, seja a nuclear, a hidrelétrica, a das usinas ou aquela que passa dentro de cada coração e mente da nossa gente que quer fugir desse beco sem saída que é a situação ainda colonial do nosso Brasil.

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Lucas Rubio

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